14.º MÊS: OS DIRETORES DE INFORMAÇÃO VOTAM CHEGA?
No que ao tempo de antena diz respeito, Ventura é apenas ultrapassado pelo primeiro-ministro. Algo de errado não está certo.
É curioso o seguinte fenómeno: se o regular funcionamento das instituições parecer menos garantido (basta parecer e por vezes nem é preciso tanto) a tendência dos eleitores é dar força aos partidos mais à direita de quem governa; nos nossos tempos, porém, e mais do que isso, a escolha tomba para a extrema-direita.
Esta viragem extrema, que não é exclusiva a Portugal, acontece com um partido do centrão no governo. Poder-se-á argumentar que o PS é de centro-esquerda (discordo) e dizer, assim, que a afirmação que fiz no parágrafo anterior carece de validação caso fosse o PSD a governar. Pelas várias forças em jogo, é difícil fazer o exercício, até porque o PSD dificilmente governaria, na actual conjuntura, sem o apoio do Chega.
Esta introdução serve para sublinhar que o eleitor “moderado”, quando é para se radicalizar, fá-lo associando-se a um quadro de valores retrógrados, autoritários e atentatórios à Carta dos Direitos Humanos. Os eleitores, em sentido amplo, não consideram votar à esquerda do PS: vão do PSD para o Chega ou da abstenção para o Chega ou até do PCP para o Chega . Estas transferências de voto, sobretudo para o Chega (ouras relevantes são do PSD para a IL ou do BE também para a IL), devem preocupar-nos de sobremaneira.
A razão mais evidente para explicar o fenómeno, e muita gente já a constatou, é a facilidade com que a mensagem populista da extrema-direita ressoa em certas franjas do eleitorado. Contudo, para isso acontecer é preciso haver caixas de ressonância; a julgar pelas intenções de voto, há uma na sala de cada família portuguesa.
A comunicação social, sob o medium da televisão, tem um papel crucial na amplificação da mensagem de qualquer político. Mas, ao contrário do que, curiosamente, as pessoas que votam no Chega dizem, eles não são todos iguais, sendo um, em particular, mais diferente do que os outros.
No artigo académico “Populismo em Portugal: o factor media”, de Estrela Serrano, e que se debruça no período correspondente à estreia de Ventura como deputado, pode ler-se o seguinte:
Como refere Mazzoleni (2008), ao privilegiar a personalização da política o “factor media” favorece o surgimento de líderes capazes de explorarem as condições políticas e sociais e contribui para legitimar lideranças personalizadas e populistas. Em suma, da análise realizada é possível concluir que a liderança populista de André Ventura se alimenta essencialmente da sua presença nos media. O conteúdo das suas mensagens e o estilo discursivo das suas intervenções enquadram-se claramente nas duas dimensões do populismo citadas por Jansen (2011): mobilização e discurso. O “factor media” é, pois, o elemento essencial da estratégia do líder do Chega.
O modus operandi de Ventura não mudou: fez dele o líder da terceira força parlamentar e continua na base da estratégia, a que acrescentou outras nuances, como a criação de realidade. Num ensaio de Sofia F. Santos, publicado no Setenta e Quatro, podemos ler, a este propósito:
A extrema-direita conhece bem este fenómeno [atração por notícias que apelam ao pathos] e usa-o em seu benefício de duas formas: 1) alimentando narrativas mediáticas e temas que apelem a emoções negativas; 2) aproveitando a curta capacidade de atenção e essa fuga para ultra simplificar realidades complexas, propaganda misinformation (ou mesmo desinformação). Se o tópico “quente” da manifestação desta semana foi a corrupção, outros temas preferidos são a sobrevalorização da comunidade cigana (relacionando-a com criminalidade) e da subsidiodependência, o tópico do crime e da segurança (Portugal é o sexto país mais seguro do mundo) e as soluções anti-constitucionais e sangrentas, como a castração química de pedófilos (sangue é sempre um plus, lembram-se?). Há, portanto, uma “lógica confrontacional, emocional, sensacionalista e simplificadora da realidade", como refere Gustavo Cardoso.
O antigo número 2 de Ventura, Nuno Afonso, fez uma relevante declaração à revista Sábado sobre este tema:
Apesar deste esclarecimento, Nuno Afonso, que foi chefe de gabinete do grupo parlamentar de Ventura e que entretanto saiu do Chega, revela que foi discutido internamente a forma de provocar o máximo ruído possível no parlamento. "Por exemplo, falou-se em aplaudir o mais alto possível quem discursasse pelo Chega porque faz toda a diferença na televisão", conta à SÁBADO.
Mas vamos a números. Qual é a percentagem e que posição ocupa o líder da terceira força política parlamentar em Portugal?
É bastante preocupante a falta de proporcionalidade entre tempo de antena e relevância do cargo. O líder do maior partido da oposição, Luís Montenegro, tem três horas (!) a menos do que Ventura. Poder-se-á argumentar que Montenegro não é deputado, mas a diferença é abismal. Mais ainda, importa atentar para a pequena diferença entre António Costa e André Ventura. Por último, até Marcelo Rebelo de Sousa, de quem temos a impressão que muito aparece, consegue ter menos tempo que o líder do Chega.
Regressando ao ensaio de Santos, gostaria de destacar as seguintes passagens:
O conceito que, diria, mais se aplica ao caso de André Ventura é o de “político-celebridade”, uma construção que, como refere Gustavo Cardoso, é tanto sua como dos media e do sistema capitalista que requer a constante criação de novas narrativas que prendam a atenção dos consumidores de informação.
É importante referir que um estudo na Alemanha provou que a percepção de autenticidade dos políticos (um indicador muito importante para atrair o voto) aumenta significativamente com a sua presença nos media. Os resultados disto estão à vista: não só com a normalização da sua presença e dos temas que trata nos media - a normalização já é tanta que pouco nos parece chocar –, mas também com os resultados eleitorais: passou de um único deputado para terceira força partidária no parlamento ao eleger 12 deputados em 2021.
Um exemplo claro desta criação de realidade e aproveitamento de antena é a substituição dos parlamentares do Chega presentes na CPI à TAP.
Estas táticas estão a ser cada vez mais bem identificadas, mas a democracia continua refém de um conjunto de regras que só fazem sentido a quem quer jogar o jogo democrático. Este caos lançado sobre o sistema, com o intuito de o desvirtuar e substituir por algo ainda pior é, como refere o autor Giuliano da Empoli, desenhado e engendrado - um caos que requer uma certa engenharia.
Na receita do sucesso da extrema-direita, temos de juntar à televisão as redes sociais. Sobre a importância do algoritmo, diz assim o autor italiano, em entrevista ao Público:
Creio que há duas explicações. A primeira é que, evidentemente, os novos instrumentos costumam ser explorados pelos outsiders e não pelos media e partidos tradicionais. Os movimentos mais radicais, de um lado e do outro, viram uma possibilidade e um espaço de que não dispunham antes. A segunda razão é mais estrutural. Quem são os “engenheiros do caos”? São pessoas que transportam para a política a lógica das redes sociais.
E aqui chegamos à pergunta que dá título a esta edição: se fosse uma profissão com direito a voto (extra, além do civil) será que os diretores de informação dos generalistas votariam Chega? A considerar pelo grave serviço que fazem à democracia, com tanto soundbite de Ventura, diria que sim.
Estas são as pessoas que têm de respeitar um código deontológico, nomeadamente no que ao gatekeeping e agenda setting diz respeito, e que, pela responsabilidade que têm, melhor deveriam desempenhar essas funções. Os números que vimos acima são muito desfasados, tanto para as funções políticas como para o dever dos media em noticiar proporcionalmente as várias figuras políticas.
Deixo aqui outra passagem da entrevista ao autor citado por Costa no mais recente debate quinzenal:
[…] os conteúdos da extrema-direita são perfeitamente compatíveis com a lógica das redes. São extremos, inflamatórios, muitas vezes, verbalmente violentos. Funcionam muito bem em termos de atracção e tornam-se facilmente virais. Geram uma adesão forte e, mesmo os que os combatem, acabam por ajudá-los. Porque este fenómeno viral alimenta-se de tudo, alimenta-se também das reacções.
Na política e nos mass media. Os novos media são centrífugos, porque o seu único objectivo é atrair e, para isso, é preciso excitar. Infelizmente, em Itália, é essa hoje a dinâmica do sistema político.
No meu entender, a forma de cobrir a extrema-direita é reduzir o tempo de antena ao mínimo possível, passando a menor quantidade possível de intervenções populistas, nunca esquecendo que o tratamento jornalístico tem de ir muito além do pé de microfone: o quarto poder que o jornalismo tanto reclama é ainda mais importante nos dias de hoje.
O meu maior foco foi na televisão pois é o medium de acesso mais imediato, mas toda a comunicação social, independentemente do meio - rádio, jornal e digital - tem responsabilidades. Convidar ou aceitar artigos de opinião de quem tanto se revolta contra o jornalismo é uma péssima prática.
Para fechar
Copio e colo parte de uma entrevista publicada no Expresso no mês passado, bastante pertinente para o tema desta edição.
“Mas o que eu gostaria de lhe perguntar é se esta ainda é uma questão discutida no New York Times. Vocês falam sobre isso? Ou na New Yorker, Susan? Será esta ainda uma pergunta em aberto? Como lidar com Donald Trump?
P.B. É, sim. É uma grande questão. E precisamos de falar sobre ela. Quando ele saiu da Presidência houve uma inclinação no Times e noutros jornais para não lhe dar uma enorme cobertura só por ele dizer coisas escandalosas. Só porque ele diz algo ultrajante, devemos recompensar isso com uma história no jornal? A questão aí é que, por vezes, se não o levamos a sério, então não estamos a levar a sério algo que devíamos estar a levar a sério. Por exemplo, quando ele disse a frase “deveríamos acabar com a Constituição”, ela não recebeu muita atenção. E eu penso que essa deveria ter sido a história principal da primeira página. Uma pessoa que foi o Presidente dos Estados Unidos e que quer voltar a ser Presidente e diz que devíamos pôr fim à Constituição, sem outra finalidade que não fosse a de o levar de volta ao poder! Deveríamos levar isto a sério. E por isso há este enigma. Não queremos, por um lado, fazer o jogo dele, dando-lhe atenção imerecida; por outro lado, devíamos prestar atenção ao que ele diz. Ele pode voltar a ser presidente.
Será que as pessoas foram longe demais com a cobertura da acusação? Podemos argumentar sobre isso, certamente. E o argumento na Casa Branca é este: “Tudo bem, se o outro quiser passar o tempo a ser acusado na televisão, estamos felizes por sermos aqueles que estão a trabalhar na política de alterações climáticas, na política de cuidados de saúde e na taxa de inflação e tudo isso. Esperam que isso seja um contraste que funcione a seu favor. Mas trata-se de uma circunstância invulgar. Nunca vimos isto na história americana, onde um ex-presidente numa era moderna tem mais atenção do que o actual presidente. E mais uma vez, não é por coisas boas. Não é como se Biden estivesse a dizer: “Hey, tenho de sair e ser acusado para poder chamar a atenção”. Não é o tipo de atenção que normalmente se desejaria. Mas Trump chama toda a atenção. Não importa se é boa ou má. Uma vez disse, em frente a um assistente, que toda a atenção é boa desde que não lhe chamem pedófilo. Por isso, não lhe chamaram pedófilo.
S.G. Acho que tem razão, muita da cobertura minuto a minuto foi uma parvoíce na televisão: ele saiu do elevador, ele está a caminhar em direcção ao átrio, ele está a apanhá-lo, a porta abriu-se, o carro conseguiu chegar à West Side Highway. Isso foi um absurdo. Havia muito poucas notícias na própria acusação, apenas o que o procurador distrital iria divulgar nos daria mais informações sobre as acusações. Portanto, era realmente de um pedaço de papel de que estávamos à espera e quaisquer fotografias de Trump que surgissem. As fotografias eram interessantes, certamente que valia a pena ver, mas tudo o resto era apenas muito blá, blá, blá. E esse é o tipo de cobertura que penso que faz com que as pessoas se sintam enjoadas.
Mas, a favor do ponto do Peter, face ao país dividido em que vivemos agora, o New York Times ou a CNN ou a New Yorker não escreverem tanto sobre Donald Trump durante dois anos não interessou aos seus apoiantes. E esse é o problema, certo? Deu às pessoas o falso sentido “oh, agora está tudo bem”, como se ele tivesse desaparecido. E infelizmente já não é assim que o nosso ambiente mediático funciona. Penso que isso levou as pessoas a um certo mal-entendido sobre o que estava a acontecer politicamente no Partido Republicano ao longo dos últimos anos.”